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Ricardo Mendes usou crack após decepção amorosa e lutou dez anos contra droga, até ser acolhido no Pão do Povo da Rua e se tornar símbolo do projeto em Roma 

Quem vê o antes e depois de Ricardo Mendes, 44, quase não acredita que seja a mesma pessoa. Viciado em crack por dez anos, ele sempre viu sua vida por um fio, mesmo quando se tornou rei de uma favela e chegou a ser senhor da reciclagem no centro. Só voltou a se encontrar quando foi acolhido e passou a liderar projeto que alimenta pessoas em situação de rua

Nessa trajetória, perdeu casa, emprego, amigos, dentes, documentos e o próprio peso. Ganhou barba, marcas pelo corpo e a experiência para lidar com intempéries e todo tipo de gente —além de uma tatuagem que homenageia a pessoa e o projeto que resgataram sua dignidade.

"Eu me perdi quando encontrei a cracolândia. Lá é tudo muito simples, porque tudo é negociado, até a cinza do cigarro", diz o ex-morador de rua.

A década de luta contra o crack foi marcada por inúmeras recaídas, a vergonha em cada queda e o sofrimento de se ver sozinho e sem nada na rua, passando dias de trago em trago. Ainda assim, a vontade de parar de usar a droga só vinha quando ele não estava usando.

"Assim, sabe, em um domingo à noite chuvoso, quando você lembra da sopa da sua mãe, do edredom que você tinha. Mas aí vem o próximo trago, e você esquece tudo."

Há três anos, Mendes foi acolhido pelo Pão do Povo da Rua, ONG criada por Ricardo Frugoli que alimenta pessoas em situação de rua em São Paulo. Desde então, "está limpo" e coordena o dia a dia do projeto social, com sede no bairro do Bom Retiro.

Em maio, viajou com outros integrantes da ONG para a Itália. A "comitiva do pão" teve um encontro com o papa Francisco no Vaticano e membros da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura).

Em depoimento à Folha, Mendes relata como foram os dez anos de entrega ao crack, do primeiro trago à rotina na praça Princesa Isabel, e o encontro com o papa em maio, que coroou sua nova fase. "É como se eu tivesse zerado a vida."

"Uma decepção amorosa me levou ao crack em 2012. Eu tinha 32 anos, uma vida estruturada e ótimo salário como paisagista em São Carlos, interior de São Paulo. Quis ‘dar um tiro’ para tomar coragem e me vingar do ex-companheiro. Procurei um amigo que me levou à favela, onde comprei R$ 100 de crack e usei por 24 horas. Foi o suficiente para me dominar por dez anos.

Por um tempo, conseguia usar a droga e era funcional. Mas aí comecei a emagrecer, faltar no trabalho, virar noites usando. Em dois anos, perdi o emprego e a casa onde morava.

Fui parar na edícula no fundo da casa da minha mãe, que a essa altura já sabia da situação e ficou ao meu lado. Pedi para botar fechadura eletrônica, cerca elétrica, que me policiassem mesmo, e consegui ficar uns meses sem uso.

Em 2015, resolvi aceitar o convite de trabalho de uma amiga e vim para São Paulo. E aí eu me perdi quando encontrei a Cracolândia.

Lá é tudo muito simples porque tudo é negociado. Até a cinza do cigarro. Porque o crack é como parafina: se você encostar no fogo, derrete e vira óleo. Precisa da cinza do cigarro no cachimbo para absorver esse óleo. Ele queima e vira fumaça quando você traga. Então, com um maço de cigarro na mão, eu passava o dia todo no crack.

E, no dia de chuva, quando ninguém acha bituca seca no chão do fluxo, quem tem cigarro é senhor na Cracolândia. Você escuta ‘cigarreiro, cinza pronta’.

Como roubei o celular dessa minha amiga para usar a droga, perdi o espaço que tinha e fui para a rua. Foram sete meses sem dar notícia para minha mãe. Até que tomei coragem e pedi a ela para ser internado.

Minha família veio do interior e, em novembro de 2017, fui para uma clínica, de onde saí um ano depois. Nessa época, conheci um ator com quem me relacionei e, como estava limpo, fui morar com ele em São Paulo.

Aluguei um carro para trabalhar como motorista de aplicativo. Estava tudo bem até uma briga nossa que me desestabilizou. Saí pra trabalhar e vi uma moça andando desesperada na rua. Aquilo me gelou: eu sabia que era a euforia de estar chegando na biqueira. É uma pressa, pisando assim.

Eu não resisti e comecei a segui-la. Estava a poucos quarteirões de casa. Virei a esquina e ali abandonei tudo, deixei para trás meu relacionamento e os cinco meses limpo.

Fiquei dois dias trancado no carro. Apaguei. Que vergonha de encarar tudo de novo. Acordei com um policial tentando estourar o vidro do carro. Contou que minha mãe estava me esperando em São Carlos.

Ele me levou até a rodoviária do Tietê e avisou: ‘Se eu te encontrar na rua de novo, vou te forjar, você vai passar um dias na cadeia pra entender como é que é lá dentro’. Assim que o policial virou as costas, subi uma escada e desci outra. E dessa vez me enfiei dentro da favela Pau Queimado, na zona leste. De lá, não saí por um ano e meio com medo de a polícia me pegar.

Encontrei um barraco e comecei a trabalhar para a ‘firma’, desbloqueando celulares roubados. Ali eu fui rei. Não me faltava crack pra usar. Só que um dos celulares que caíram comigo era de um delegado e foi rastreado. A polícia toda invadiu a favela. Era fugir ou morrer na mão do crime. Larguei o barraco desesperado e vim para o centro da cidade.

E aí foram dois anos e oito meses dormindo na rua. Minha barraca foi a oitava da praça Princesa Isabel. Eu comprava minha droga e me enfiava lá dentro. Saía para fazer meu corre, que era a reciclagem. Foi quando conheci o professor [Ricardo Frugoli, criador do Pão do Povo da Rua].

A gente pegou uma amizade porque, além do nome em comum, eu estava sempre sorrindo, dando bom dia. Daí comecei a vir buscar pão no projeto, cuidava do lixo reciclável da ONG, pedia para guardar meu documento, porque cheguei a fazer RG nove vezes.

É que na rua você não tem nada. Você acorda sem sua mochila, sem seu documento, sem o tênis que você fez de travesseiro. É até triste dizer, mas por eu ser loiro, alto e de olhos azuis, sofri menos violências que outros colegas. Mas, quando estourava o fluxo e a polícia invadia, aí era tiro de borracha e gás para todo lado.

A vontade de parar de usar a droga só vem quando você não está usando. Assim, sabe, em um domingo à noite chuvoso, quando não tem bar para pegar um copo de água. Você lembra da sopa da sua mãe, do edredom que você tinha. Aí vem o próximo trago. E você esquece tudo.

A virada de chave veio quando eu adoeci. Fiquei 17 dias sem levantar da calçada. Os oito furúnculos na minha perna eram o organismo jogando a droga pra fora. Eu não tinha mais nada, era só morrer.

De uma segunda para terça-feira choveu muito. Acordei molhado. Olhei para o relógio da [avenida] Duque de Caxias, era 4h15 da manhã. Decidi ir atrás do professor, caminhando, debaixo de chuva.

Sentei na porta do projeto e uma senhora me viu. ‘Levanta essa cabeça’, disse ela. Eu acho que ela me salvou. Assim como o professor, que me olhou, me contratou, me colocou no alojamento e cuidou de mim quando estava prestes a ter mais uma recaída. Tanto que, depois de um ano limpo, fiz uma tatuagem em homenagem a ele e ao projeto, que resgatou minha dignidade.

Estou livre do crack há três anos. É muito difícil aprender a esquecer a droga. A mente tenta sabotar o tempo todo, o tempo todo.

Hoje sou coordenador no Pão do Povo da Rua. Gerencio bastante coisa, o professor me cobra para dar meu melhor. E ainda acolho, dou ouvido, mais uma chance. Porque sei o que eles passam na rua e minha história acaba sendo um incentivo para a mudança.

Fiz parte da ‘comitiva do pão’, que encontrou o papa Francisco no Vaticano em maio. Quem poderia imaginar que eu iria das ruas da cracolândia para Roma.

Ajudei a coletar coletar aquelas cartas da população de rua que entregamos ao papa. E eu fui como representante do povo da rua. Foram nove livros com as quase 1.200 cartas encadernadas.

Diante de Francisco, eu disse que me senti renovado, realmente perdoado. Saudar o papa trouxe uma sensação de alívio, de limpeza. É como se eu tivesse zerado a vida e iniciado um novo ciclo."

Leia na Folha de S. Paulo 

 

 

 

 

 

 
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